Como é ser um escritor jovem em Portugal e o futuro dos livros

Helena Magalhães // Abril 23, 2020
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Não é fácil, leitores. Deixem-me começar por vos dizer que Portugal atravessa uma crise literária sem precedentes e os números de vendas de livros continuam a cair ano após ano. Mas parece que bloqueámos neste cenário. Aceitámo-lo como se fosse natural. Encolhemos os ombros e falamos com saudosismo de outros tempos. Eu vejo-o como derrotista e um reflexo do envelhecimento desta indústria que precisa urgentemente de mudar. Hoje, Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor, quero falar-vos sobre o que é ser escritor em Portugal em 2020. E sobre tudo o que está errado na literatura portuguesa e o seu futuro.

Para mim, escrever sempre foi uma coisa de gente erudita. Quando penso na jovem Helena de 15 anos que sonhava em ser escritora, era um daqueles sonhos impossíveis. Uma coisa que pensamos que poderíamos fazer numa outra realidade. E eu nunca tive grandes aptidões para nada em especial. A única coisa que fazia na escola era escrever. Queria mudar o mundo. Queria fazer qualquer coisa que tivesse impacto. Foi por isso que acabei numa faculdade a estudar políticas sociais e criminologia e aos 25 anos percebi que me sentia absolutamente infeliz naquilo que, supostamente, deveria querer fazer para o resto da vida. A minha voz não era aquela.

Aos 15 anos, eu deveria ter sentido que podia ser escritora. Deveria ter-me sentido representada. Mas escrever era para os “Saramagos”, para os “Antónios Lobo Antunes” e as “Agustinas Bessa-Luís”. Nunca imaginei que houvesse espaço para mim, para esta rapariga meio estranha que gostava de contar histórias. E ainda não acredito que haja para muitas outras raparigas algures num quarto a devorar livros e a sonhar em escrever os seus. É por isso que agora uso a minha voz para tentar mudar a literatura em Portugal.

João César das Neves escrevia em 2012 no “Diário de Notícias” que Portugal é um país espantoso, com um povo capaz de feitos únicos, mas está há séculos dotado de uma elite pedante, mesquinha e medíocre. Claro que o economista não se referia à literatura, mas eu, muito humildemente, costumo usar as suas palavras para me exprimir.

Faltam novos ficcionistas em Portugal? Claro que não.

O “Jornal de Notícias” escreveu em 2019 que os autores com menos de 35 anos são uma raridade e culpou a maturidade tardia e má qualidade do ensino. Como pode um jornal – que é parte do problema da crise literária – fazer tal afirmação? Os media são responsáveis por difundir cultura, mas quantos jornais, revistas ou programas de televisão têm segmentos literários adaptados à nossa geração? Os principais produtores, avaliadores e comentadores da literatura portuguesa são na sua grande maioria homens acima dos 50 anos. Este é o perfil de editoras, prémios, júris e imprensa. Do Júri do prémio Leya, por exemplo, apenas um membro tem menos de 40 anos. E é este gap geracional que continua a condenar e a perpetuar uma literatura portuguesa que arrasta as cinzas de um Eça ou de um Pessoa. 

Chamam-nos geração do ecrã, uma geração que não sabe ler e, por isso, não sabe escrever. Mas todos estes que nos condenam nada fazem para mudar este cenário. O prémio de novos autores não é entregue há 10 anos, mas há muitos novos autores a escrever livros absurdamente bons todos os anos. Livros que falam para esta geração. Ainda assim, os media, os críticos e a elite literária continuam a catalogar os novos autores – como eu – de simplistas, de autores de pouca qualidade e que não merecem mérito nem divulgação.

Ser um escritor contemporâneo em Portugal hoje é uma ginástica que depende, em grande parte, da sorte e da sua capacidade de auto-promoção. Eu sei que tenho tido sorte. Não me dou ao luxo de pensar que foi só talento. Porque muitos autores com talento e livros extraordinários não conseguem sequer ser publicados. Esta crise é uma bola de neve da qual todos somos culpados.

Em primeiro lugar os media porque não apoiam nem incentivam à leitura. Esta falta de divulgação leva a que as editoras não apostem em novos autores, nem comuniquem para esta geração 20-40 porque não vão conseguir chegar até ela sem o apoio dos media. E, por isso, esta geração continua a sentir-se cada vez menos representada e, em consequência, a ler menos. É um ciclo interminável que parece não ter fim e onde ninguém parece querer dar o primeiro passo. João César das Neves tinha razão quando nos chamou de elitistas e pedantes.

O futuro dos livros depende da mudança urgente

Num outro momento em 2019, o “Jornal de Notícias” também escreveu que João Reis era uma das pouquíssimas revelações da literatura portuguesa dos últimos anos. Quão ingrata é esta afirmação para todos os escritores a lançar livros que não conseguem ver divulgados porque uma elite literária estabelecida decidiu, sem os ler, que não têm qualidade? E, em entrevista, João Reis disse que é cada vez mais notória a incapacidade, por parte dos leitores, de entender o conceito de ficção, ironia ou sarcasmo, o que, desde logo, limita a criação literária. Perdoa-me João, mas é esta elite literária que continua a entender a literatura como uma arte para minorias a grande culpada pelo envelhecimento e estagnação da literatura actual. Não é a incapacidade intelectual dos leitores.

A geração do ecrã, como nos chamam, é a geração do futuro. E a sobrevivência dos livros no mundo digital depende da sua mudança urgente e adaptação aos novos leitores.  Se durante séculos os livros físicos persistiram, foi porque se foram adaptando às mudanças no mundo dos leitores. Mas nenhuma outra geração testemunhou uma mudança tão repentina no ambiente cultural como a nossa. Se não apoiarmos os novos autores portugueses, como irá a nossa literatura evoluir? Se não conseguirmos repensar esta arte e adaptá-la aos dias de hoje, quem serão os futuros leitores num mundo cada vez mais rápido e tecnológico? Estamos a criar adultos que não vão ler.

Lá fora vemos escritores novos a ascender ao sucesso mundial com livros contemporâneos ou Young Adult que conquistam gerações, são aclamados pelos media e amplamente divulgados. E por cada pessoa que se entusiasma com um livro destes e volta a apaixonar-se pelo hábito de ler, é um novo leitor que ganhamos. E isto é relevante. Isto tem impacto. Isto muda a literatura e o mundo.  Mas Portugal continua relutante em mudar e persiste em colocar a fasquia do que é boa literatura num patamar a que nenhum leitor quer chegar nos dias de hoje. E as editoras, os media, os críticos e as lojas perpetuam este cenário.

A literatura tem de se adaptar aos leitores de hoje.

Não se pode pedir que um jovem de 25 anos hoje se interesse por Saramago ou António Lobo Antunes ou Agustina Bessa-Luís ou Lídia Jorge ou Eça de Queiroz. Porque esta geração mudou. Não só temos mais distrações (da televisão às séries e às redes sociais), mas a nossa percepção de nós próprios mudou. Hoje também nos sentimos jovens até mais tarde. Se os nossos pais nos tiveram aos 20 anos, hoje temos toda uma geração de 30 anos que não tem filhos e ainda está a traçar o seu caminho.

Assim, não é disparatado que a percentagem de leitores de literatura Young Adult ronde os 60% de adultos. E é por isso que, hoje, a literatura contemporânea e jovem é cada vez mais escrita para um público entre os 20 e os 40 anos que quer fugir da realidade da vida adulta e que dá por si a ler livros com narrativas juvenis e a identificar-se. Grandes sucessos da literatura mundial são livros fortes mas fáceis de ler, muitas vezes com enredos complexos e que abordam temas transversais a qualquer idade e, claro, que nos levam a sentir as emoções da adolescência. E estas são emoções que nunca esquecemos e que nos marcam enquanto adultos para sempre.

Um jovem que hoje não seja cativado para os livros nunca vai chegar à fase da sua vida em que vai querer ler Saramago ou António Lobo Antunes ou Agustina Bessa-Luís ou Lídia Jorge ou Eça de Queiroz. Assim, é a própria elite literária portuguesa que se está a extinguir a si própria.

E parece que foi preciso uma pandemia mundial para, de repente, os livros voltarem a ser tema de interesse. Basta fazer uma pesquisa no Google para encontrar jornais e sites um pouco por todo o mundo a falar de sugestões de leitura e de clubes do livro.

Que haja algo de bom a retirar de um dos piores momentos da nossa geração. Que tudo aquilo que estamos a viver, o isolamento e o distanciamento social nos aproximem novamente dos livros. Que as quebras nas vendas façam as editoras repensar a sua comunicação. Que o medo do futuro faça os media querer falar de livros. E que nós – escritores – consigamos continuar a difundir a magia.

Porque é disto que o mundo precisa. De magia. E ela encontra-se dentro dos livros.

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