Como fazer o luto em tempos de pandemia?

Ana Tapia // Junho 11, 2020
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O segredo do amor

é maior 

do que o segredo da morte.” 

Oscar Wilde 

No dia 29 de maio 2020, pelas 12h30, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reportou no mundo 357 688 mortes por motivos atribuídos ao COVID-19. Estes números distam significativamente do número de mortes da pandemia da pneumónica, que decorreu entre 1918-1919 (cerca de 50 milhões). Essa catástrofe foi ultrapassada em situações muito piores do que as atuais, determinadas pela saída da primeira guerra mundial, estado de saúde débil da população, entre outras. 

Pandemias, mortes, perdas, apesar de fazerem parte da vida, não significa que estejamos preparados para lidar com estas situações. Nos últimos meses do ano de 2020, o mundo tem vindo a ficar suspenso com medidas progressivas de confinamento, que restringem a liberdade individual, geram confusão, incerteza e uma crise social e económica com riscos incontáveis para a saúde mental. A segurança que se tinha é ameaçada pelo medo de um inimigo invisível COVID-19, pouco conhecido, e que coloca a vida, a saúde, e tudo o que conhecíamos como garantido em risco, propiciando um conjunto de perdas difíceis de lidar, particularmente, quando são ignoradas. 

O que significa “fazer o luto”?

O luto é um conjunto de reações que se sucedem à perda de algo ou alguém. A psiquiatra Elisabeth Kubler-Ross, nos anos 60, identificou o luto como um processo presente em doentes terminais. Mais tarde associou o luto, não só à perspectiva de perda da vida por motivo de uma doença terminal, morte de alguém significativo, mas também outras perdas: emprego, a saúde, problemas de infertilidade, divórcio, entre outras mudanças de vida. 

Efetuar um luto implica reconhecer o que se sente, não fugir das emoções, dar tempo e espaço para lembrar e sentir, como também, distrair-se ocasionalmente e seguir em frente. 

Qual a diferença que ocorre num panorama de pandemia?

A frequência e variedade das perdas é maior. O perigo de contágio está presente em qualquer parte do mundo ameaçando a segurança. As mortes, comparativamente aos outros anos, têm vindo a aumentar. Às medidas de emergência e calamidade pública sucedem-se postos de trabalho em perigo, desemprego, baixa de rendimento, maior propensão para crises familiares e violência doméstica, distanciamento e isolamento social, menor mobilidade pelo fecho de fronteiras, diminuição do tráfego aéreo, entre outros. 

Sucede-se um conjunto de perdas, que incluem a morte de pessoas significativas, desemprego, baixa de rendimentos que influenciam quer o estilo de vida, quer a forma de trabalhar e relacionar-se com os outros. 

O luto é igual para todas as pessoas?

O luto é uma reação emocional a uma perda, e cada pessoa reage de forma diferente. Apesar de se ter tornado popular que existiam 5 fases no processo de luto (negação, zanga, culpa, adaptação/negociação e aceitação), para o psicólogo e autor Michael Shermer não há nenhuma evidência científica sobre a possibilidade de estas reações acontecerem. 

Importa não fugir do que sente quer seja zanga, frustração, culpa ou tristeza. Fazer o luto com todas as emoções implicadas representa dar espaço e tempo para aceitar o que se passou, lembrar e seguir em frente. Nesse período até poderá agir como se tudo fosse igual, zangar-se por sentir como injusto ou sem sentido o que lhe aconteceu, culpar-se, entristecer-se, chorar até que aceite e seguir em frente, mantendo a presença de quem perdeu, na memória e pensamento ou na vida. 

Mas, antes disso, é preciso lidar com as emoções que surgem, de expressar o que sente, preparar-se para os momentos especiais mais propensos a lembrar os efeitos da perda e atuar perante alterações de comportamento que se prolonguem no tempo. 

Quatro formas de lidar com o luto em tempos de pandemia:

1. Encare a zanga, a culpa ou outras emoções que o invadam

A zanga assume muitas formas: culpar a pessoa ou algo que tenha contribuído para a sua morte, revoltar-se ou culpar alguém ou a Deus pelo sucedido, pela injustiça que tal representa. Todas estas reações são naturais, muitas vezes representam a única maneira de lidar com a frustração associada ao desaparecimento daquela pessoa da vida. Ao reconhecer estas emoções, está a validar a importância que a pessoa tinha para si, a manter a recordação e encontrar, ou renovar, um sentido para a sua vida. 

2. Expresse o que sente

Lide com o tabu da morte e expresse o que sente. É importante que fale sobre o que se passou e passa, e relembre as experiências vividas com a pessoa: momentos especiais, histórias marcantes. Expresse-se através da escrita, do desenho, fotografia, homenageie a pessoa de todas as formas que se lembrar. Partilhe com outros o que se passa consigo, em especial aqueles que possam estar mais disponíveis, capazes de entender a situação, ou que conheçam a outra pessoa. Essa expressão e homenagem tem os seus momentos privilegiados para ter lugar a seguir à morte, no velório e nas últimas cerimónias. Mas não termina aí. 

3. Prepare-se e lide com acontecimentos especiais

Aniversários de nascimento e morte, feriados, Natal, Páscoa ou outras datas ou locais que possam ser marcantes para a sua relação com a pessoa podem suscitar tristeza e saudade. É normal que tal aconteça. Prepare-se para prestar mais um momento de homenagem, nem que seja falar sobre a pessoa ou ter uma fotografia visível com uma flor ou uma vela. Faça algo em memória: realizar um passeio ou atividade que a pessoa gostasse ou qualquer coisa que a sua imaginação e sensibilidade aprove. Aceite se não conseguir lidar muito bem com a situação, não force estar alegre ou como se nada fosse. O mais importante é reconhecer e aceitar como se sente. 

4. Atue perante alterações emocionais e físicas prolongadas

Quando identifica em si ou em alguém próximo o prolongamento de alterações de apetite, sono, atividade, envolvimento nas atividades habituais, perda de concentração ou manifesta algum comportamento que identifique como bizarro, talvez seja o momento de pedir ajuda especializada junto de um técnico de saúde mental.  

O luto também se manifesta como uma reação a uma vida considerada sem sentido perante a perspetiva de sonhos não realizados ou expectativas não concretizadas, dissonante do estado de realização pessoal e abertura às perspetivas que a vida oferece. Neste caso também se trata de uma perda de algo ainda que, por vezes, seja difícil diferenciar se se trata de uma reação a uma perda, se é um estado depressivo, que ocorre perante o sentimento de falta de autoestima, suficiência ou valor. 

A vida voltará ao normal.

A morte de alguém querido não termina com a relação que se tinha. Fale interiormente com a pessoa. Verbalize o que deseja dizer: o seu dia a dia ou qualquer outro assunto que o ajude a lembrar, proporcione conforto e torne o outro presente. Tudo o que viveu com essa pessoa existirá enquanto mantiver a sua memória. Mas a vida continua, e precisa seguir em frente por si e pelos outros. Afinal, como diz o poeta mexicano Amado Nervo, “aqueles que amamos nunca morrem, apenas partem antes de nós”. 

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