O quarto estava escuro, e eu deitada ao lado delas. Vão fazer dez anos, mas pouco me importa a idade, vou brincar com elas aos “colégios internos” enquanto me deixarem, conversando pela noite fora depois da luz apagada. Uma delas pede-me que conte histórias de quando eu era pequenina e, por momentos, penso que estão a ser simpáticas para comigo, querem com certeza fazer-me sentir importante, não há avó nenhuma que não goste de recordar. Insistem e rapidamente percebo que a curiosidade é genuína.
A magia de ser avó
Inspirei fundo felicidade, a mão a passar no cabelo de uma, os braços quentinhos de outra em redor do meu pescoço, é difícil de descrever a quem não tem netos a magia destes momentos, mas aqueles que os têm não precisam de muitas palavras para saber do que falo. E depois comecei a falar-lhes do primeiro rapaz por quem me apaixonei, quando tinha 13 anos.
“Quando ele me disse que tinha nascido no mesmo dia, à mesma hora e no mesmo hospital do que eu, fui trespassada por um raio”, contei-lhes, e a C. perguntou entre risos, com aquela ironia tão dela: “E tu acreditaste?!” Fingi indignar-me. E continuei. Depois daquela festa, ignorou-me completamente, preferia os cavalos, ainda tentei tudo para o reencontrar, mas nada. Não namorámos, nem casámos, nem fomos felizes para sempre, e acabei por transformá-lo num pompom de lã, com olhos feitos de botões, qual troféu de guerra pousado por muitos anos em cima do meu armário. “Deve ter ficado feio e gordo”, concluiu a M., em jeito de consolação, e voltámos a rir às gargalhadas, até que o avô no quarto ao lado nos mandou calar. Não nos calou. Falámos só mais baixinho, até o ouvirmos ressonar.
Dormimos menos do que devíamos, e tivemos de esconder da mãe delas as horas em que finalmente adormecemos, mas estes momentos são melhores do que qualquer máscara anti-envelhecimento que por aí se anuncia. É um lifting da alma, e quando a alma volta ao sítio onde pertence, recarregamos as pilhas, valorizamos a nossa existência e a vida que tivemos a graça de poder viver.
Celebro este mês dez anos de avó, mais propriamente de bi-avó — porque esse é o estatuto de quem tem a sorte de começar com netas gémeas — e hoje já sou avó de oito, número em constante atualização. Num fim de tarde de agosto, nasceram a Carmo e a Madalena, prematuras de 35 semanas. Corri primeiro para a Ana, saída de uma cesariana complicada, lavada em lágrimas e sofrimento, tudo o que não queria para ela, e só depois de ter adormecido, fui ao berçário. Numa incubadora aberta, estavam dois bebés minúsculos de gorros enfiados, e ao vê-los chorei convulsivamente.
Depressa aprendi a conhecer-lhes as feições de cor, o meu dedo percorreu suavemente a linha do nariz, o contorno das orelhas, as bochechas, maiores numa do que noutra, para descer sob o queixo, acabando por ficar pingado por lágrimas estúpidas, que insistiam em cair. Passei horas a tentar descobrir diferenças, numa busca urgente de uma identidade para cada uma, que as tornasse naquilo que todos queremos ser: únicos. E enquanto a «oxitocina por procuração» me invadia, percebi como a natureza é sábia e nos armadilha a um compromisso eterno com um recém-nascido, ao voto livremente assumido de amar para sempre, na saúde e na doença, na prosperidade e na pobreza, nos momentos bons e maus da vida, até que a morte nos separe… e para lá disso.
Depois da euforia do nascimento, descobri o medo da morte, real ou imaginária, não importa, aquele medo terrível que nos revela como a vida é um milagre que tantas vezes tomamos como certo. Quando voltei a entrar na sala dos prematuros e as vi ligadas a máquinas, cateteres nas mãos, sondas na boca e, mais aflitivo, a Carminho com a cara minúscula escondida por uma máscara de oxigénio, os braços e as pernas fininhas a espernear contra toda aquela intromissão, rodeada de médicos e enfermeiras, fiquei sem fôlego. Seis horas depois, a gémea mais frágil reagiu bem e começou a respirar quase sozinha, e eu fiquei nas nuvens, consciente de que, pelo menos para mim, nasceu de novo.
Na manhã seguinte, hesitei no momento em que ia pôr nos pés os meus inseparáveis ténis. Ups, será que uma avó pode andar de jeans com remendos e ténis, confundindo-se ou querendo ser confundida com a mãe ou, igualmente grave, com um Peter Pan que não quis crescer?
Afinal, o que é isto de ser avó?
Mergulhei para debaixo da cama, em busca de uns mocassins encarnados, um compromisso que me deixava tempo para pensar no assunto. Três semanas depois, comecei a perceber o que era ser avó, um papel difícil que exige autocontrolo e diplomacia, que nos permite estar próximos, mas nos obriga a guardar distância, a medir o envolvimento e o sentimento de posse, para não magoarmos, nem nos deixarmos magoar, mas ainda cometi muitos erros. Errava sempre que pretendia catequizar a Ana sobre os benefícios disto ou daquilo, deixava transparecer que era capaz de adormecer melhor a Carminho (e bem feita, quando tentei, não fui capaz!), ou de fazer arrotar a Madalena (uma impossibilidade), dar lições ao melhor pai do mundo que é o meu genro ou a concorrer (por dentro) pelo amor e atenção daqueles bebés que, de repente, se tornaram o centro de tudo.
Quando um mês depois saíram de nossa casa, para voltarem para a deles, lembro-me que tentei disfarçar a dor com um comentário trocista, ao estilo da Ágata: «leva tudo, menos as crianças», e de nessa mesma noite, num impulso de angústia, ter enviado um SMS à Ana, que dizia qualquer coisa como: «Achas que vou conseguir ser mesmo, mesmo importante para elas, que têm a sorte de vos ter como pais?» A resposta veio rápida: «Acho que estamos todos com esse medo. Porque como são tão insuportavelmente importantes para nós, não suportamos imaginar não sermos vitais para elas. Não tenho é dúvida nenhuma do que a mãe é para mim: sem o seu amor não as conseguiria amar tanto!» Abençoados SMS, Skype, Facebook e telefones com câmara, porque tornam possível manter em tempo real, quase que ao vivo e, decididamente, a cores, os laços de afeto, incluindo-nos na vida uns dos outros. Mesmo quando, do nada, o mundo se virou do avesso com uma pandemia que supera todos os filmes de ficção científica.
Comecei nessa altura um álbum a que dei o nome de «Passeios com a Avó», com fotografias das nossas aventuras na floresta, à procura de pixies e fadas, das escaladas ao castelo, das «mangueiradas» na relva, com «chuvinha», como diz a Madalena, dos dias sob o céu azul do Alentejo, em que nos esforçamos por dar festinhas aos cordeirinhos que acabaram de nascer, do desafio de as ensinar a distinguir as ervas daninhas que têm de ser arrancadas, das flores que são para ficar. E claro, dos momentos passados a ler livros, no prazer de redescobrir as histórias do Winnie the Pooh e tantas outras, que juntam dentro de cada um de nós o passado, o presente e o futuro, a voz dos que já cá não estão, mas que ficaram em nós, e que tanto queremos deixar no coração dos nossos netos.
Histórias para os avós lerem aos netos
Foi de todas estas aventuras, desse novo mergulho na vida dos mais pequeninos e da certeza de que as histórias e a magia devem fazer parte de qualquer infância feliz, que nasceu um livro de Histórias para os avós contarem aos netos (e onde os pais não entram), que conta com três contos do «convidado especial», o meu filho Francisco, e que para mim são as melhores de todas.
Livro que desejo que seja um pretexto para entrarmos com os nossos netos num outro mundo, perdendo-nos e reencontrando-nos entre sorrisos, risos e gargalhadas, momentos de arrebatamento e de expetativa, provocam uma felicidade tão pura e viciante, que só pode ter raízes na alegria que sentimos ao colo das nossas próprias mães, no perpetuar de um ritual que já lhes pertencia, e que continua, como um fio invisível, a tornar-nos mais família. Um testemunho passado de geração em geração que mais não é do que a certeza da eternidade. Porque a eternidade assegura-se de cada vez que temos a certeza de que ficámos dentro deles, nos tornámos parte deles, e enquanto assim for, enquanto sorrirem com a memória de um destes momentos, uma destas histórias, estaremos vivos. Mesmo que não “presencialmente”, como nesta era pós-covid aprendemos a dizer.