Sementes voadoras pelos Direitos Humanos

Catarina Furtado // Dezembro 10, 2021
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Direitos Humanos
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Hoje celebra-se o Dia Internacional dos Direitos Humanos.

Os direitos reconhecidos na Declaração adoptada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948 dizem respeito a homens e mulheres, sem distinção alguma, seja de cor da pele, opinião política ou outra, religião ou país de origem, orientação sexual, identidade de género, raça ou estrato social. São 30 os artigos que estão inscritos na Declaração Universal dos Direitos do Homem que tem obrigatoriamente de passar a ser entendida como a Declaração dos Direitos Humanos. Nascermos livres e iguais, temos de ser respeitados e protegidos, ter uma identidade e circular livremente, pensar e exprimir, escolher o trabalho e os lazeres, ir à escola e desfrutarmos da cultura, ter um nível de vida suficiente para assegurarmos a nossa saúde e bem-estar e entre muitos outros direitos, temos também deveres para com a nossa comunidade.

Enquanto Embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) há 21 anos (missão voluntária), comunicadora, documentarista, ativista, escritora, mãe e mulher, fundadora e Presidente da Associação sem fins lucrativos e organização não governamental para o desenvolvimento, a Corações Com Coroa (CCC), testemunhei que no mundo inteiro quem mais sofre a violação de todos estes direitos são as meninas, as raparigas e as mulheres. Assisti no terreno, nos vários países desenvolvidos ou em desenvolvimento isso mesmo, milhares de vezes, através das conversas demoradas que fui tendo com as populações.

No mundo inteiro quem mais sofre a violação de todos estes direitos são as meninas, as raparigas e as mulheres.

Vi nos olhos e ouvi nas palavras de muitas meninas e mulheres os gritos de ajuda, mas o mais importante: reconheci-lhes o poder, a força de serem donas dos seus próprios destinos, usando a sua decisão e vontade para exigir os serviços que desejam e precisam. Nada é mais transformador para a vida das meninas e mulheres do que ter o poder de decidir e escolher. 

A Covid-19 mostrou-nos que os progressos alcançados podem facilmente recuar.

Uma das maiores consequências da pandemia foi ter vindo destapar e agravar as desigualdades de direitos sociais e económicos, para raparigas, mulheres, pessoas com deficiência, pessoas refugiadas e outras em situação de vulnerabilidade. E ainda aumentou o fosso entre ricos e pobres, que registou o maior salto de sempre em 110 anos. Segundo o World Inequality Lab, a fortuna dos mais ricos está a crescer no planeta. Os dados recolhidos por este estudo, acabado de divulgar, ressaltam a persistência das desigualdades no mundo. As estatísticas recolhidas nos quatro cantos do mundo mostram um aumento das disparidades económicas entre as populações. Actualmente os 50% mais pobres possuem 2% do património mundial, enquanto os 10% mais ricos monopolizam 76% das riquezas.

A fome aumentou. O número de crianças no mundo sem acesso à educação, saúde, habitação, nutrição, saneamento ou água, cresceu 15% e há hoje mais 150 milhões de menores de idade em situação de pobreza multifuncional. Para as 48 milhões de mulheres e meninas a precisar de assistência humanitária, incluindo quatro milhões de grávidas, a Covid-19 veio aumentar o risco. Nos países em desenvolvimento, a pandemia acentuou a escassez de serviços, materiais e medicamentos essenciais aos cuidados de saúde materna, planeamento familiar e saúde sexual e reprodutiva.

Mas a pandemia também nos permitiu conhecer a importância e o papel da resiliência e da liderança das mulheres.  A sua liderança mostra-nos que elas são agentes de mudança. 

No maior campo de refugiados do mundo, Kutupalong no Bangladesh, testemunhei a situação do povo Royinga, através dos olhos de Hasina, uma menina grávida. Conheci-a num dos espaços seguros para mulheres assegurados pelo UNFPA onde ela encontrou cuidados e informações sobre planeamento familiar, gravidez e parto seguro, a que nunca antes tivera acesso. Hasina partilha agora o seu conhecimento com outras meninas e respetivas famílias, defendendo a importância de adiar o casamento e planear as gravidezes, para que possam continuar na escola. Na Guiné-Bissau com Fatumata vi o impacto actual e futuro da Mutilação Genital Feminina nas vidas de meninas e mulheres, a quem a autonomia e a integridade do seu corpo foram negadas devido a esta prática nefasta. Em Moçambique fiquei impressionada com o casamento e uniões infantis que retiram as meninas da escola, aceleram a gravidez precoce e aumentam a prevalência de muitas morbilidades em adolescentes, mas também multiplica as diferentes formas de violência de género. No Uganda, a Cathy, inspirou-me com o seu trabalho de empoderamento de meninas refugiadas sobreviventes de violência sexual. Através dela também conversei com crianças soldado transformadas em escudos humanos.  E na Colômbia, entrevistei muitas mulheres refugiadas, como Jwana que comigo partilharam os abusos e violações que tinham sofrido e de como os seus corpos são usados como arma de guerra. Mas também o caminho que percorreu com outras mulheres para recuperar alguma da dignidade que o conflito armado e a pobreza extrema tinham adiado ou suspendido.

Todas estas histórias, que alguns de nós só conhecem de livros ou relatórios, dizem respeito a pessoas reais, cujas dores e medos, esperanças e sonhos, são iguais aos meus e aos vossos.

Aprendi que, a menos que meninas e mulheres tenham acesso à educação e aos serviços de saúde e direitos sexuais e reprodutivos, para fazerem as suas próprias escolhas, a menos que tenham autonomia sobre o seu corpo e assim tomar decisões básicas sobre si mesmas (como ter ou não relações sexuais, utilizar ou não contraceção, usar produtos de higiene menstrual, ter acesso a cuidados de saúde e ir à escola), a realização da sua vontade e a sua liderança nunca serão uma realidade.

A autonomia sobre o corpo é um direito. O primeiro direito das meninas e mulheres. E por isso, nesta minha partilha, escolhi dar um destaque especial a este direito humano, para que os leitores e leitoras do Simply Flow me sigam as inquietações.

A liderança destas meninas, raparigas e mulheres no mundo em desenvolvimento é a liderança que precisamos, agora mais do que nunca! Mas também em Portugal.

Nesta semana dos Direitos Humanos, estreou na RTP a sexta edição da minha série documental “Príncipes do Nada que já existe há 15 anos e que partilho a autoria com o Realizador Ricardo Freitas, da produtora Até ao Fim do Mundo. Desta vez debruçamo-nos sobre várias temáticas que ilustram de forma expressiva as desigualdades sociais exclusivamente no nosso país e o trabalho incansável das associações humanitárias no seu combate. Apenas três exemplos:

– A fome em Portugal que é tantas vezes uma fome “envergonhada”, mas é real e crescente. Números recentes indicam que um quinto da população portuguesa, quase dois milhões de pessoas, é pobre. A crise trazida pela pandemia de Covid-19 veio agravar estes dados e aumentar os pedidos de ajuda junto dos bancos alimentares e de outras instituições de solidariedade social. E as mulheres foram as mais prejudicadas por existirem tantas sozinhas com os filhos a seu cargo.

– A violência doméstica e sexual também aumentou e tem um alvo destacado: as mulheres.

– Outra problemática está relacionada com a situação dos cuidadores informais que foram também drasticamente prejudicados pela pandemia (segundo a Associação Nacional de Cuidadores Informais haverá cerca de 1,4 milhões em Portugal) e são na sua maioria mulheres entre os 45 e os 75 anos.

Amo o meu país mas não entendo um mundo com fronteiras porque os Direitos Humanos são universais, inalienáveis, indivisíveis e interdependentes. Acredito que só quando forem respeitados os direitos humanos de todas as pessoas é que será possível criar um lugar onde ninguém é esquecido.

Nunca poderá existir desenvolvimento sem Direitos Humanos.

Nesta humanidade partilhada, no século em que vivemos: Todos os dias morrem 20.000 adolescentes no parto com menos de 18 anos, todos os dias morrem 830 mulheres por causas evitáveis, preveníveis, associadas à gravidez e ao parto. A cada 11 segundos uma grávida ou um bebé perdem a vida. Mais de 218 milhões de mulheres não conseguem aceder a contracetivos modernos. Uma em cada três mulheres é vítima de violência ao longo da sua vida. Cerca de 70% das mulheres e raparigas em situação humanitária experienciaram o que é viver com violência. E as raparigas portadoras de deficiência que são entre 93 e 150 milhões, sofrem dupla discriminação, pelo seu sexo também. Hoje em dia, 200 milhões de meninas e mulheres vivem com as consequências de uma Mutilação Genital Feminina. Os estados que integram a ONU têm de reunir recursos e acelerar mudanças essenciais para que até 2030 seja possível: Zero mortes maternas, zero formas de violência com base no género e zero necessidades não resolvidas em termos de planeamento familiar.

Somos nós, oriundos dos países onde existe o reconhecimento dos nossos direitos e da liberdade de expressão que temos de colocar os nossos ouvidos ao serviço dessas vozes. Não se trata de falar por essas pessoas. É ouvi-las e fazer ecoar as suas vozes, mensagens, dores, opiniões e apelos.

Alcançar os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (Agenda da ONU até 2030) implica assegurar que todas as meninas e raparigas tenham condições para realizar o seu potencial e participar em igualdade de oportunidades na vida pessoal, familiar e comunitária, nas organizações sociais à escala nacional, regional e global.

Não levem a mal uma sugestão de Natal porque foi a pensar nesta necessidade de semear os Direitos Humanos e sobretudo os das meninas, raparigas e mulheres que a designer de joias, Luísa Rosas, desenhou uma peça muito especial e decidiu que o resultado das vendas reverterá na íntegra para as nossas “Bolsas de Estudo CCC” com apoio bio-psico-social atribuídas durante três anos, a jovens raparigas que estão na iminência de abandonar os estudos por dificuldades financeiras, mas que têm bom aproveitamento, muita vontade e imensos sonhos que não são impossíveis de atingir se nós agirmos! Chamam-se sementes voadoras (Flying Seeds) e representam o meu grande sonho: empoderar raparigas para testemunhar cada vez mais na prática o nosso lema: “Apoiar uma mulher, é apoiar uma família, uma comunidade, um país”.

Boas festas, solidárias.

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