Ser Voluntária num Campo de Refugiados

Dulce Machado // Março 15, 2019
Partilhar

Quando somos crianças, sonhamos com o futuro. Quando envelhecemos, sonhamos com o passado.

O tempo passa e os sonhos estão sempre ali para nós, seja para planear o amanhã ou para reviver algo especial do passado. Desistir de sonhar é como desistir de uma parte importante de nós. Por isso, nunca desisti de sonhar. Desde pequena que, sempre, acreditei no poder, na força do sonho.

O sonho não tem género, classe, idade, cor, profissão ou validade. Nunca é tarde para sonhar ou para concretizar um sonho.

Sou uma mulher que gosta das coisas simples da vida, porque nelas vejo a verdadeira beleza. O sorriso de uma criança, uma flor no jardim, um gesto de gentileza, uma palavra de conforto, um abraço, um olhar de compaixão e todo e qualquer verdadeiro sentimento.

Para mim, tudo isto é o mais importante, não há dinheiro que compre valores, sentimentos e emoções.

Sempre acreditei na generosidade, na solidariedade, no amor.

Sempre acreditei que não há impossíveis, que há sempre uma solução, um caminho. Sempre acreditei num mundo melhor e mais justo para todos.

O desejo de fazer uma missão internacional sempre fez parte de mim, o tema dos refugiados foi algo que, sempre, me tocou muito

Em 2015, quando vi a fotografia de Alan Kurdi, uma criança síria, que apareceu morta numa praia, senti uma revolta imensa dentro de mim, uma vergonha enorme da Humanidade, senti que todos éramos responsáveis pela sua morte.

A imagem deste menino, tornou-se no símbolo da crise migratória que já matou milhares de pessoas do Médio Oriente e de África.

Pensei e acreditei que estas imagens poderiam levar a uma mudança de atitude da Europa em relação aos refugiados. Que iria mudar as mentalidades dos líderes europeus e mundiais; Líderes estes que, a todo o custo, sem olhar a meios, tentam impedir refugiados e imigrantes de entrar no continente; Líderes estes que tentam ignorar e disfarçar o horror da tragédia humana que vem acontecendo.

Mas, infelizmente, nada mudou!

Tudo o que fazia sentido deixou de o fazer.

O meu desejo, o meu sonho de fazer uma missão internacional com refugiados foi crescendo ano após ano e, em agosto de 2018, parti para a Grécia, para o Campo de Refugiados de Elefsina, sem olhar para trás.

Ser voluntária num Campo de Refugiados mudou, completamente, a minha vida. Tudo o que fazia sentido deixou de o fazer.

Lembro-me que quando lá cheguei, no primeiro dia, senti o mundo a fugir-me debaixo dos pés, senti um murro no estômago.

Não queria acreditar que, em pleno século XXI, nesta suposta Europa solidária, pudessem haver campos de refugiados, que nos fazem lembrar campos de concentração, senti que estava a entrar numa espécie de cenário de guerra. Simplesmente, não queria acreditar.

Nunca estamos, totalmente, preparados para o choque.

Vemos na televisão, lemos nos jornais e pensamos que estamos prontos. Errado. Não estamos prontos.

É completamente diferente ver ao vivo, ver com os nossos olhos, sentir a dor verdadeira de todas aquelas pessoas.

Adultos, crianças, idosos que tinham uma vida, tal como todos nós, que viram as suas casas ser bombardeadas, os seus locais de emprego, os seus parques, jardins… Que viram filhos, pais, irmãos, esposas, maridos, família, amigos sendo torturados, violados, mortos, numa guerra sem sentido.

Aliás, nenhuma guerra tem sentido. A Guerra é a coisa mais desprezível que existe.

Fogem a pé por montanhas frias, escuras, à mercê de contrabandistas e dos próprios militares. Fogem num bote à deriva e sem qualquer proteção. E, quando chegam pensando estar salvos, e que, apesar da dor e das feridas que carregam, podem recomeçar uma vida, eis que os metem em campos onde não há humanidade, onde as condições são desumanas, cruéis. Inimagináveis.

Onde todos os dias tentam sobreviver a mais um amanhecer incerto e a um anoitecer doloroso. Fogem de uma Guerra para outra.

Ser refugiado não é uma escolha.

Não é uma opção que estas pessoas fazem. Qualquer um de nós, um dia, pode ter a infelicidade de se tornar num refugiado.

Foi o mês mais díficil mas, também, mais bonito da minha vida. Lá, um dia  corresponde a um mês, um ano, pois temos acesso a tantas histórias de vida, a tantas situações que nos parece impossível ser tudo num só dia.

Todos os dias, desde que chegava de manhã até me ir embora ao anoitecer, tentava dar-lhes o melhor de mim: o meu sorriso, o meu carinho, o meu afeto.

Fui tão acarinhada, conheci pessoas com um coração enorme, humildes, com uma coragem nunca vista.

As crianças, com um sorriso lindo, com os olhos tristes, cansados e cheios de medo. Medo do que tinham visto, do que tinham passado, do escuro que faz lembrar o som das armas, das bombas, a morte da mãe ou do pai, os gritos, as torturas, as violações…

Lembro-me, entre tantas outras coisas, com especial carinho, do anel de lata que me ofereceram, de adormecer o Omar no meu colo, das músicas da Badoor, de ensinar ao Mohammed como soltar um papagaio, de plantar uma planta com o Anoodi e com o Mohammud, de dançar com a Ritaj, de ler poemas com o Aland, de ver o Solomon numa trotinete, de ouvir os sonhos da Omayma, da Lamia, da Roshin a fazer um casaco de malha para o seu bebé, de dar festas na sua barriga todos os dias.

Da coragem e determinação de todas aquelas mães e mulheres, de me ensinarem palavras em farsi, em kurdish e em arabic, de um dia ver uma das crianças a dormir agarrada a um lápis de carvão, como se fosse a coisa mais valiosa do mundo, do pai que chorou agarrado a mim, da alegria que sentiam quando chegávamos ao Campo, de os ouvir a gritar o meu nome, sempre que o dia terminava, a correrem para mim com um pequeno pacote de leite, o pouco que tinham, para me oferecer.

Lembro-me, ainda, de quando uma das crianças me perguntou o que significava paz e liberdade, das tardes de cinema que improvisávamos, das muitas histórias de tentativas de suicídio, das marcas de guerra no corpo de muitas das crianças, das mulheres e dos homens.

Da união entre todos nós, voluntários e refugiados. Voluntários de todo o mundo, pessoas lindas, que se tornaram na minha família e que passaram a fazer parte da minha vida.

Lembro-me do último dia. De não querer ir embora, de não os querer deixar, das lágrimas, do coração pesado, do lanche de despedida, de me perguntarem quando é que eu voltava, de me pedirem que nunca os esquecesse. Prometi que iria voltar e que nunca iria desistir deles. As saudades são muitas!

Vou voltar em agosto.

Vou a Elefsina passar uns dias com eles e depois sigo para a ilha de Lesbos, para o pior Campo de Refugiados da Europa e um dos piores do mundo, o Campo de Refugiados de Moria.

Sei que, desta vez, o desafio vai ser ainda maior, mais difícil ainda. Num Campo com capacidade para 2000/3000 pessoas, estão lá, atualmente, à volta de 9000 pessoas.

Há que agir urgentemente.

Há que alertar o mundo para a necessidade de dar a mão, de ajudar, verdadeiramente, estas famílias, estas crianças.

Não queremos muros, fronteiras, vedações. Queremos mais abraços, afetos, sorrisos, generosidade, solidariedade, amor.

Que, um dia, os campos de refugiados possam dar lugar a campos de girassóis!

Que possam ser um exemplo do que não se deve repetir para as futuras gerações!

Que todos os seres humanos possam ser felizes e acreditar na magia  e na força do sonho.

Que a Humanidade acabe com a Guerra, antes que a Guerra acabe com a Humanidade.

Nota: Fotografias por Dulce Machado.

Social Media

Copyright © 2023 Simply Flow. Todos os direitos reservados.

Este site utiliza cookies para melhorar a sua experiência. Aceitar Saber mais