Um armário a abarrotar e nada para vestir

Eunice Maia // Abril 25, 2021
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nada para vestir
nada para vestir

Há menos de dez anos, eu era extremamente consumista. Fascinada por moda, por roupa, sapatos, malas e acessórios, gastava grande parte do meu tempo, energia e dinheiro em compras semanais. Acompanhava as “tendências” e comprava, comprava muito. De uma forma compulsiva e totalmente inconsciente. Fui acumulando e acumulando, até que era tanta a roupa que tinha que nem cabia no meu armário. Ironicamente, por muita roupa que tivesse, sentia que vestia sempre o mesmo e realmente apenas usava uma pequena parte e parecia sempre que não tinha roupa nenhuma. Tinha um armário a abarrotar e nada para vestir!…

Não perdi o fascínio pela moda e não deixo de acompanhar os criadores que sempre admirei, continuando a vibrar com a fantástica expressão artística que ela também é; todavia, a compulsão e o impulso desapareceram. Lentamente, fui reduzindo e deixando de comprar. Deixei de sentir o apelo e a urgência. 

O que mudou? Eu. 

Eu mudei… Comecei a (re)pensar e a tomar consciência das opções que fazia também a este nível (se o fazia com a minha alimentação e com outros produtos que consumia, foi uma extensão natural) e do que a roupa representava — ou deveria representar — para mim. E o momento mais poderoso foi quando decidi que passaria a ser eu a vestir as roupas, em vez de serem elas a vestirem-me

A minha essência continua ali, independentemente dos trajes que eu carregue. 

Dei por mim a repetir mais vezes roupas. Em momento algum me senti mal ou envergonhada por estar a repetir roupa. Pelo contrário. Foram esses momentos que me deram mais força para aprofundar este tipo de lógica na relação com o que eu vestia, derrubando convenções estéreis de que é «uma vergonha» repetir roupa em eventos diferentes ou vestir as mesmas peças em dias consecutivos. Qual o sentido de ter de comprar, por exemplo, um vestido só para um dia (umas horas)? Qual o sentido de o vestido ficar depois esquecido no roupeiro só porque não se pode repetir a toilette? Isto foi libertador. 

Repito peças que me fazem sentir bonita, confiante e que exprimem da melhor forma a minha personalidade e a minha forma de estar. Não é isto que deve ser a moda, uma expressão do que somos? A principal aprendizagem neste processo foi perceber isso mesmo: a roupa é um instrumento, mas não nos pode instrumentalizar. Foi assim que começou a minha pequena revolução no roupeiro. Aprendi a cuidar e a estimar muito mais as peças, a fazê-las perdurar, porque gosto muito delas. Não quero que sejam descartáveis, substituídas por outras, só porque já foram usadas uma vez.

nada para vestir
Fotografia por Gustavo Figueiredo

O que vestimos está a despir o planeta?

Quanto mais lia e pesquisava, mais desconfortável ficava com o tipo de consumo que fazia e que fui abandonando. E cada vez tinha também mais a certeza de querer usar o meu poder, a minha voz, enquanto consumidora, para mostrar que estava em contraciclo com a voragem da fast fashion

As minhas raízes a norte do país, no Minho, e a proximidade de vários polos de produção têxtil (vestuário e calçado) permitiram-me também acompanhar no passado a decadência deste setor e as graves consequências dessa ruína que arrastou milhares de trabalhadores especializados para o desemprego. É no mínimo estranho enviarmos a nossa matéria-prima para um país do outro lado do mundo e, graças a subcontratação e de deflação dos custos, importarmos o produto final. 

Como podemos, enquanto sociedade, compactuar com grandes empresas que produzem 52 coleções anuais? Corresponderão essas 52 coleções a necessidades reais? Não. Qual o seu objetivo? Que as consumamos, descartemos e sigamos para a próxima, para que possam movimentar comercialmente e produzir cada vez mais. E quem assume as consequências dessa produção massiva? Como se explica que os preços sejam sempre tentadoramente baixos? Como podem as fábricas e os trabalhadores sobreviver? Até que acontecem tragédias como a do Rana Plaza, o prédio de oito andares que colapsou em Dhaka, no Bangladesh, e os problemas de toda a cadeia de fornecimento da fast fashion ficam expostos à luz do dia. O gerente da fábrica cortou os custos e ignorou as regras básicas de segurança, impedindo os trabalhadores de abandonar o local, cuja derrocada era iminente. Morreram 1138 pessoas, foi dos maiores desastres da indústria da moda. 

Este veio a público, mas haverá muitas histórias de exploração que nunca vieram, nem virão. Como continuar a consumir desta forma, sabendo que as nossas roupas são produzidas com este enorme custo humano? Sabendo que quem faz as nossas roupas, muitas vezes, ganha menos de dois dólares por dia? Que muitos dos trabalhadores nesta indústria não recebem sequer salário mínimo. São as mulheres as principais vítimas e as mais vulneráveis a esta injustiça social. Como continuar a ser cúmplices de um sistema que lucra à custa da (sobre)exploração e do desrespeito pelos direitos humanos?

É preciso parar para repensar a indústria têxtil e também o nosso consumo. 

Parar para pensar (no longo) caminho que as peças de roupa percorrem até chegar até nós. Esse percurso abarca desde as matérias-primas utilizadas (e o seu impacto ambiental: água, energia, ar, biodiversidade, químicos, resíduos) às pessoas envolvidas na cadeia de abastecimento, e tem sido marcado nos últimos anos essencialmente pela (sobre)exploração: produzimos demais e consumimos demais. 

A moda é uma extraordinária expressão artística, uma forma de projetarmos a nossa personalidade e a nossa cultura, de nos sentirmos bem, mas não faz qualquer sentido que a associemos a este padrão de produção têxtil massiva, consumo célere, descarte sucessivo e sempre a preços cada vez mais baixos.

A indústria têxtil é uma indústria extremamente poluente. 

O cultivo das matérias-primas utilizadas é feito muitas vezes recorrendo ao uso de pesticidas em vastas extensões de solo, contaminando com a sua toxicidade esse mesmo solo e as águas, assim como a saúde de quem deles depende. 

Como se não bastasse, estamos a comprar mais roupa do que há duas décadas. Ora, a maior parte da roupa tem na sua constituição fibras sintéticas e microplásticos, não sendo, por isso, biodegradável. Quando descartadas, não sendo recicladas (uma operação extremamente complexa e, por isso, também extremamente rara entre as marcas), vão parar aos aterros, libertando gases nocivos e, mais uma vez, inquinando o solo e as águas, destruindo todo o ecossistema. O mesmo acontece nas lavagens sucessivas, indo estes microplásticos parar ao oceano, com as consequências desastrosas que já conhecemos.

A roupa e aquilo de que é feita (e como é feita), tal como a comida, tem impacto sobre nós e sobre o planeta.

Está na hora de deixarmos de pensar apenas no produto final e de passarmos a olhar para toda a cadeia de abastecimento, assim como para os efeitos e as consequências desse produto final. A moda não pode refletir somente a preocupação com um bom design, com a cor, com a forma, com o estilo… tem de ir muito mais além disso. 

Está na hora da «est-ética»: um manifesto que obedeça a princípios e a premissas éticas, que sirvam o equilíbrio entre o ser humano e a natureza. Está na hora de uma mudança de paradigma, da passagem do crescimento (lucro associado a danos ambientais, redução de custos de produção, desumanização e injustiça social) para a sobrevivência (sustentabilidade e regeneração, criatividade, inovação nos materiais, reciclagem e upcycling, colaboração, economia circular, aposta na qualidade e nos saberes ancestrais e tradicionais, valorização do artesão e do manual, celebração dos valores culturais e da identidade, mais cadeia e menos marca, mais verdade e menos marketing).

E, finalmente, está também na hora de assumirmos que, enquanto consumidores, também fazemos parte do problema. A nossa compra é o nosso voto e o nosso veto, o nosso poder. Que sinal queremos dar daqui para a frente? Queremos continuar a ceder aos anúncios com que somos bombardeados e que nos segredam subliminarmente a ideia de que precisamos de mais roupa, porque a que temos já está desatualizada desde a semana anterior, porque, entretanto, já foi lançada uma nova coleção ou porque há black friday e as peças  ficaram misteriosamente a metade de um preço que nunca foi o real? Queremos continuar a acreditar que a felicidade está no consumo, na aquisição de mais e mais e mais? Será que, depois de mais e mais e mais, somos realmente felizes? 

Ter ou ser?

Está na hora de exigirmos respostas e de perguntarmos #whomademyclothes e de nos juntarmos à Fashion Revolution. O consumidor dos nossos dias é, mais do que nunca, também um ativista, e pode (e deve) fazer as perguntas: “Quem fez?”; “Em que condições?”; “Com que impacto?”. 

Não me esquecerei nunca das palavras de Shima, uma trabalhadora têxtil, e do seu testemunho no documentário True Cost: “Não quero que ninguém use nada feito com o nosso sangue”. É nossa obrigação, enquanto consumidores, valorizarmos as pessoas que fazem o que usamos, percebendo qual o verdadeiro custo do que consumimos. 

O que está por trás de um preço baixo? Ausência de segurança no local de trabalho, ausência de condições dos trabalhadores, salários baixos, exploração, negação do acesso à educação e cuidados de saúde, poluição da água, contaminação do solo, toxicidade que afeta a nossa saúde. Os preços baixos têm um preço tão alto…

Depois de ter tido este «abanão» (é uma palavra que, até do ponto de vista da sugestão visual, retrata bem aquilo que senti; uma sacudidela que me fez despertar), não houve como voltar atrás. Simplesmente, fui deixando de comprar e o pouco que adquiro passou a ser sempre muito bem pensado. Esse é o meu principal e primeiro conselho: parar para pensar antes de comprar/adquirir alguma peça.

Manual para compras conscientes:

Antes de comprar, fazer perguntas e responder com total honestidade:

  • Gosto mesmo desta peça?
  • Vou usá-la no mínimo umas 30 vezes? Preciso mesmo dela ou tenho já algo parecido ou igual?
  • Consigo conjugá-la com outras peças?
  • Tem qualidade e está bem produzida? (Ver costuras, acabamentos, resistência, durabilidade, indicações sobre manutenção)
  • De que materiais é feita?
  • Quem a produziu e onde?
  • Sei quem estou a apoiar com esta compra? Está alinhada com os meus valores?
  • O que lhe posso fazer no  final de vida ou para evitar o seu final de vida?

Radiografia do roupeiro

Sei bem, por experiência própria, que não é fácil (e também nem sempre é possível, por vários fatores) ter tudo isto em conta e obedecer a todas estas preocupações. Defendo também que de nada adianta comprar roupa “sustentável”, se a nossa forma de consumir se mantém idêntica. A roupa pode ser sustentável, no entanto, se não a usarmos depois, a compra não foi consciente. O mesmo se aplica às compras em segunda mão. O melhor mesmo é «irmos às compras» no nosso próprio armário, no armário da família e dos amigos, e percebermos bem como podemos tirar partido do que já temos ou dar novo uso ao que deixámos de vestir.

Não foi por ter deixado de comprar (ou por comprar menos) que deixei de me encantar pela moda e por aquilo que ela representa enquanto expressão artística e criatividade. Acredito que vivemos uma nova era, vibrante, de potencial inesgotável; são muitos os designers e marcas slow fashion que aceitam todos os dias o desafio de deixar um legado sustentável, que criam peças com propósito, que apostam em parcerias (e não em subcontratação), que homenageiam e valorizam toda a cadeia de produção, que resgatam o fazer manual e outros saberes ancestrais. Entusiasma-me sobretudo a ideia de que é possível olhar para objetos em fim de vida e reinterpretar o seu uso; de que há marcas, mesmo sendo esse um processo altamente complexo e sofisticado, a comprometerem-se com o destino das peças em pós-consumo, a reciclá-las e a aproveitar o resultado dessa reciclagem para produzir novas peças; de que há criadores a registar todo o processo com total transparência e a fazer questão de mostrar #whomademyclothes.

12 Dicas para prolongar a vida das roupas:

  1. Comece por tirar uma «radiografia» ao seu armário, para perceber o que tem, o que usa, o que adora, o que não usa e aquilo de que não gosta;
  2. Tire fotografias, com a ajuda do telemóvel, aos looks que vai construindo, para perceber o que mais valoriza e para tirar partido de várias conjugações; experimente peças que normalmente não usa, combinadas com outras que adore; veja o resultado na imagem e descubra cruzamentos novos que permitam tirar partido da roupa que já tem. Explore e conheça bem o seu estilo, para o comunicar melhor nas suas escolhas;
  3. Arrume de forma que todas as peças estejam visíveis, acessíveis e nunca sobrepostas. Com menos peças, é mais fácil vê-las e mantê-las arrumadas;
  4. Estime e conserte aquilo que já não está em boas condições;
  5. Nódoas, rasgões, em princípio, tudo pode ser tratado ou, pelo menos, disfarçado. Prefira pré-tratar localmente as nódoas, antes de colocar as peças na máquina. Faça uso da sabedoria e das técnicas populares com séculos de eficácia;
  6. Lavar menos vezes (e sempre em baixas temperaturas) e evitar a máquina de secar roupa. Lavar a roupa de cada vez que a usamos desgasta os tecidos, pela exposição à temperatura elevada da lavagem e ao efeito abrasivo dos detergentes, durando, por isso, menos tempo;
  7. Aumentar a carga da máquina de lavar, para que o uso de água e de energia seja mais eficiente;
  8. No caso de lavagem de fibras sintéticas, usar sacos de captura de microplásticos;
  9. Use mais vezes a sua roupa, repita mais vezes a mesma toilette — com a ajuda de um desodorizante caseiro ou deixando as roupas respirarem num cabide à noite, fora do armário, ou penduradas ao ar na varanda;
  10. Não precisa de passar a ferro todas as peças de roupa. Pendure-as em cabides no estendal, vai ajudar;
  11. Se precisar de adquirir novas peças, dê preferência a trocas com amigos, lojas em segunda mão. Escolha, sempre que possível, fibras naturais. Há novas aplicações para criadores e consumidores que nos ajudam a perceber quais as melhores opções, analisando toda a cadeia. E há cada vez mais conceitos que incentivam a reutilização (através de aluguer), em vez da compra;
  12. Aposte na intemporalidade, não nas tendências. Na qualidade, não na quantidade.

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